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Trabalho por aplicativo no Brasil: pesquisa apresenta dados que escondem realidade precária

30, maio 2023
notoristaAplicativo

São os algoritmos e não os trabalhadores que definem quanto custará cada tarefa

Nos últimos dias têm circulado diversas notícias que apresentam dados de uma pesquisa recente, financiada por empresas de plataformas digitais, sobre o trabalho por aplicativos no Brasil. Chama muita atenção o fato de que a divulgação desses dados ocorreu num contexto de organização de uma greve nacional dos motoristas por aplicativos por melhores condições de trabalho e renda, e às vésperas de uma nova reunião convocada pelo governo para discutir sobre a regulamentação desse tipo de trabalho no país.

Desde a divulgação dos dados, pesquisadores, organizações coletivas e trabalhadores têm se manifestado criticamente sobre o tema nas redes sociais, afirmando que houve enviesamento na formulação das perguntas e na interpretação das respostas, e ressaltando que os números, amplamente repercutidos pelas empresas financiadoras, não condizem com a realidade precária na qual estão submetidos milhares de entregadores e motoristas por aplicativos no Brasil.

A pesquisa, cujo relatório é intitulado “Futuro do trabalho por aplicativo”, foi realizada pelo Instituto Datafolha e financiado diretamente pelas empresas Uber e Ifood. A investigação, de caráter quantitativo, afirma que o seu objetivo era “coletar percepções e opiniões de motoristas e entregadores que trabalham com aplicativos de mobilidade e de entrega sobre o futuro do seu regime de trabalho, bem como verificar a aderência a algumas propostas por parte desses profissionais”. Ao todo, 1,8 mil motoristas e mil entregadores por aplicativos responderam a um mesmo questionário, enviado por e-mail, entre 17 de janeiro a 10 de março deste ano.

O relatório aponta que 51% desses trabalhadores têm como única fonte de renda o trabalho por aplicativos, e que, do percentual restante, 14% tem esse tipo de trabalho como maior fonte de renda diante de outra ocupação, 14% como fonte de renda significativa e 20% apenas como um complemento. Embora o relatório não qualifique o significado de “fonte de renda significativa” e “complemento”, não é difícil imaginar que essas frações de trabalhadores, embora sejam um pouco menores, convivem diretamente com os aspectos precários de insegurança e imprevisibilidades que caracterizam o trabalho por aplicativos.

A polêmica começa na seção “situação de trabalho preferida”, quando o relatório aponta que três quartos dos trabalhadores por aplicativos preferem manter o modelo de trabalho atual, sem reconhecimento do vínculo de emprego. Este dado, amplamente repercutido, é obtido por meio da seguinte oposição: “prefere manter o modelo atual, onde o motorista/entregador têm autonomia para escolher seus próprios horários e recusar viagens a qualquer momento, mas sem acesso aos benefícios trabalhistas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para empregados” versus “prefere ter vínculo de emprego para acesso aos benefícios trabalhistas previstos na CLT, mas as plataformas definem a jornada e remuneração e os trabalhadores não podem recusar demandas em tempo real ou decidir quando dirigir/fazer entregadas sem autorização sob pena de demissão ou sanções”. Ora, não é difícil imaginar o porquê da polêmica.

Como primeiro ponto, é importante destacar que o trabalho por plataformas digitais não é autônomo: são os algoritmos, posses das empresas donas dessas plataformas, e não os trabalhadores, que definem quanto custará cada tarefa e quais as suas condições, podendo, inclusive, punir os trabalhadores em caso de má execução ou pelo simples desinteresse na tarefa. A punição pode ser desde a diminuição de corridas até o desligamento permanente. Portanto, há uma clara subordinação do trabalho – que, a despeito de ser o que é, ainda não foi enquadrada juridicamente desta forma, impedindo que esses trabalhadores tenham acesso a direitos sociais e trabalhistas.

Além disso, é falsa a oposição estabelecida pelo instituto de pesquisa e pelas empresas financiadoras. A flexibilidade durante as jornadas de trabalho não deve ser vista como algo contraditório à possibilidade de ingresso no regime formal – com o reconhecimento da subordinação do trabalho – e, consequentemente, do necessário acesso aos direitos previstos na CLT. Aliás, nossa legislação já permite a flexibilidade de horários aos trabalhadores formais.

Para explicitar o que seriam critérios justos, poderíamos imaginar as seguintes oposições: “Prefiro ter férias, 13º salário, adicional de periculosidade, horário de almoço, licença maternidade/paternidade, descanso semanal remunerado, seguro-desemprego dentre outros direitos previstos na CLT” versus “Não quero nenhum direito previsto na CLT”; bem como “Prefiro ter flexibilidade no horário de conexão e permanência nos aplicativos, independentemente do que a empresa decidir, recebendo por isso” versus “Não quero ter flexibilidade e quero seguir a jornada imposta pela empresa dona da plataforma digital”. Vê-se que uma coisa não tem nada a ver com a outra, embora as manchetes das notícias vinculadas pelos principais jornais do país, bem como pelas próprias empresas donas das plataformas digitais, desconsiderarem – de forma nada ingênua – este fato.

O relatório aponta que nove em cada 10 trabalhadores “preferem certos direitos desde que se mantenha a flexibilidade” – aqui se encontra uma formulação justa e a possibilidade de uma análise compromissada com os dados. Essa maioria, composta por 89% dos entrevistados, responde que “é preciso garantir certos direitos e benefícios aos trabalhadores de aplicativos, desde que não interfiram na flexibilidade (ou seja, desde que se possa continuar trabalhando quando, como e com qual plataforma quiser, sem necessidade de agendamento obrigatório e comunicação com as plataformas”.

Pois sim, é possível. E, mais do que isso, também seria possível – e justo – que os trabalhadores recebessem por segundo em que estão conectados esperando, para além de estarem realizando, corridas de passageiros e/ou entregas de alimentos e produtos. Os próprios algoritmos das empresas donas das plataformas digitais já mensuram isso. Desta forma, esses dados poderiam ser obrigatoriamente cedidos e armazenados num único banco de dados, contabilizado e fiscalizado pelo Estado, garantindo a contribuição previdenciária, a contabilização de horas trabalhadas e sua relação com o salário dos trabalhadores etc.

Outro caso

Com dados obtidos por meio de entrevistas com mais de 3.025 motoristas e entregadores por aplicativos, uma outra pesquisa, divulgada em abril deste ano e realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), sob financiamento da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), entidade que representa empresas como Uber, Ifood e 99, também causou polêmica pela distorção dos dados.

Sob o título “Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos”, o Cebrap e a Amobitec apresentam as características dessas duas categorias de trabalhadores, a relação de propriedade dos veículos, o tempo das jornadas de trabalho e o cotidiano, os custos associados à manutenção dos veículos e, por fim, os rendimentos– o ponto onde reside a maior polêmica.

Por um lado, o relatório da pesquisa traz dados interessantes que permitem qualificar o processo de avanço do trabalho por plataformas digitais no Brasil, bem como caracterizar o perfil desses trabalhadores, comparando com outras pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e por surveys de acadêmicos, por exemplo. Por outro, apresenta sérias distorções na formulação de interpretações.

Conforme aponta o site do grupo de pesquisa Direito do Trabalho no Século XXI (Trab21), vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as empresas se utilizaram de uma distorção dos dados da pesquisa para apresentar valores elevados na remuneração dos trabalhadores: “Ao invés de estimar o ganho pelo tempo “logado” na plataforma, que é o tempo de trabalho na prática, observou o ganho somente no tempo de “corrida”, acrescentando faixas arbitrárias para o tempo total (0%, 10%, 20% e 30% sem corridas)”. Desta forma, as empresas divulgaram que o rendimento médio dos motoristas ficaria entre R$ 2.925 e R$ 4.756 por mês, enquanto o dos entregadores, entre R$ 1.980 e R$ 3.039.

O grupo acrescenta: “É curioso que o estudo apresente essas estimativas, quando as plataformas dispõem dos dados reais de horas logadas e horas em corrida dos trabalhadores, mas só disponibilizaram os dados de horas em corridas, como revelado na seção de metodologia”. Além da incompatibilidade do ganho pelo tempo trabalhado, o Trab21 aponta que essa investigação ignora, dentre outros pontos, os custos médios de manutenção dos veículos.

“Absurdos semânticos”

Não são poucos os livros de metodologia de pesquisa, e mesmo os livros introdutórios em Estatística, que advertem acerca dos riscos da generalização e, sobretudo, da importância de pesquisadores e instituições saberem formular boas perguntas para conseguirem obter boas respostas. Um dos guias mais interessantes e divertidos, “Como mentir com Estatística”, de Darrell Huff, desde a sua introdução afirma: “A linguagem secreta da estatística, tão atraente em uma cultura voltada para os fatos, é empregada para apelar, inflar, confundir e levar a simplificações exageradas. Métodos e termos estatísticos são necessários para relatar dados de tendências sociais e econômicas, condições de negócios, pesquisas de opinião e censos. No entanto, sem redatores que usem as palavras com honestidade e conhecimento, e sem leitores que saibam o que elas significam, o resultado só pode ser um absurdo semântico”.

Em tempo: é necessário realizar alguns questionamentos mais gerais sobre a realização dessas pesquisas financiadas pelas empresas donas de plataformas digitais. Quão livre de tendências pode ser uma pesquisa financiada por empresas? Afinal, qual seria o interesse de empresas multinacionais financiarem e divulgarem amplamente pesquisas que não apontam na direção desejada? Por que pesquisas que apontam na direção desejada por essas empresas são divulgadas neste contexto, quando há interesse do governo em regular o trabalho subordinado às plataformas digitais? Por que os trabalhadores desligados dessas plataformas não puderam ter voz, para nos contar o que os fez sair desse tipo de ocupação precária? Por que um número tão baixo de entrevistados, num universo estimado em mais de 2 milhões de trabalhadores? Por que, ao invés de pesquisas, as empresas não mostram os dados coletados por seus algoritmos? Até um leitor menos crítico saberá nos dar as respostas.

*Doutorando em Ciência Política pela Unicamp e militante da Consulta Popular.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Fonte: Brasil de Fato