Publicidade

Cenoura branca e melancia amarela: como humanidade modificou vegetais ao longo dos séculos

18, janeiro 2023

Nos últimos dez mil anos, o ser humano desenvolveu uma série de técnicas para modificar os vegetais que comemos. Entenda como esse processo aconteceu na prática — e como isso alterou a composição de nutrientes desses alimentos. As frutas do presente são bem diferentes das versões ‘originais’ de milhares de anos atrás
Getty Images via BBC
A cenoura laranja só surgiu no século 16 — antes, ela era branca ou roxa. O “antepassado” do milho era dez vezes menor do que uma espiga produzida hoje. A melancia “ancestral” tinha uma polpa amarela, e as primeiras versões vermelhas só apareceram por volta do ano 1300.
Desde o advento da agricultura, há cerca de 10 mil anos, a humanidade modificou e adaptou praticamente todas as frutas e hortaliças que consumimos até hoje. E isso, por sua vez, mudou o conteúdo nutricional delas — em alguns casos para melhor e, em outros, para pior.
O objetivo desse verdadeiro experimento da vida real sempre foi a criação de alimentos mais gostosos, bonitos ou com capacidade de resistir às pragas e às adversidades do clima de cada local. E, a partir disso, garantir o aporte de carboidratos, proteínas, vitaminas e outras substâncias essenciais à nossa sobrevivência.
Mas como essa verdadeira engenharia era (e é) feita na prática? E como isso modificou a composição de nutrientes de tantas comidas? Entenda a seguir como as técnicas agronômicas evoluíram — e quais são os desafios na produção de alimentos nos dias de hoje e no futuro.
Nos primórdios, a observação dos animais
Há milhares de anos, nossos antepassados eram nômades e dependiam da caça e da coleta para sobreviver.
Isso significa que eles não ficavam num único lugar e se moviam para uma outra região quando os recursos se tornavam escassos.
Mas como eles sabiam quais plantas poderiam ser consumidas — e quais eram venenosas ou faziam mal?
“Eles se baseavam na observação dos animais. Se os seres humanos vissem que determinada espécie comia uma fruta, uma raiz ou uma folha e não morria, isso era um indicativo de consumo seguro”, responde a engenheira agrônoma Rumy Goto, professora aposentada da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Botucatu.
Ao conferir quais plantas os animais de determinada região comiam, nossos antepassados tinham mais segurança para consumi-los
Getty Images via BBC
E esse conhecimento prévio foi extremamente valioso para o desenvolvimento da agricultura. Vários grupos foram aprendendo aos poucos, ao longo de milhares de anos, os ciclos de determinada espécie vegetal na natureza, e como seria possível cultivá-la numa escala maior para a geração de alimentos a toda uma comunidade.
Não à toa, o advento da agricultura há cerca de 10 mil anos é considerado uma revolução: a criação das técnicas de plantio, cultivo e colheita de grãos, frutos e hortaliças representou um controle maior sobre os recursos e os nutrientes necessários para a sobrevivência. Daí, com mais certeza de que teriam alimentos suficientes, nossos antepassados não precisaram mais se deslocar e puderam fixar residência num local estratégico (com acesso à água e terras férteis, por exemplo).
“Os seres humanos foram aprendendo a diferença entre os vegetais e as formas de cultivá-los. Algumas plantas dependiam de sementes para nascer, outras podiam ser multiplicadas por meio de brotos e estacas. Assim, surgiram as primeiras comunidades e as hortas ao redor delas”, resume Goto.
E, já na origem desses povoados primitivos, é possível detectar as primeiras modificações nos alimentos. Afinal, as pessoas já foram naturalmente selecionando aquelas variedades que traziam algum tipo de vantagem — seja na hora de cultivar e colher, ou no momento de preparar e consumir.
Vamos a um exemplo: o milho é originário do México Central. Há cerca de 7 mil anos, ele era apenas uma gramínea selvagem, chamada teosinto.
Na natureza, o teosinto chega no máximo a 2 centímetros. Já o milho que temos hoje tem cerca de 20 centímetros, um tamanho dez vezes maior — e isso sem falar na facilidade de cozimento e no sabor.
Nessa transição, ele também se tornou uma grande fonte de carboidratos, que são essenciais para dar energia para o corpo funcionar bem.
E isso tudo só foi possível graças ao trabalho de cultivo, cruzamento e seleção de espécies com características desejáveis ao longo de gerações.
Ou seja, aos poucos, os agricultores do passado deram preferência às plantas de milho que nasciam com algum atributo interessante — como espigas maiores, mais saborosas ou que cresciam com rapidez. Essas variedades eram cruzadas com as outras, ou plantadas na safra da próxima temporada.
O milho, portanto, evoluiu ao longo de milhares de anos e chegou nas formas e nas variedades que conhecemos hoje. O mesmo aconteceu com diversos outros ingredientes do mundo vegetal, como você verá a seguir.
Choque de mundos
Um outro capítulo muito importante dessa história aconteceu na virada do século 15 para o 16, com as grandes navegações e a chegada dos europeus ao continente americano.
Começava ali uma troca de saberes e sabores nunca antes vista — apesar do intercâmbio alimentar que já existia entre Europa, África e Ásia há muito tempo.
Alimentos típicos das Américas, como a batata, o tomate, o feijão, o abacate, o cacau e pimentas, cruzaram o Atlântico.
Alguns deles se tornaram símbolos da culinária de países muito distantes. A batata, original de Peru e Bolívia, virou a base da dieta no Reino Unido — e uma das variedades mais consumidas no mundo todo é ironicamente chamada de “batata inglesa”.
O tomate, típico do norte do Chile e do Equador, virou ingrediente básico do molho que acompanha muitas das macarronadas italianas.
“A história do tomate é curiosa, pois no passado os europeus acreditavam que era venenoso e evitavam o consumo. Ele era apenas usado como planta ornamental em jardins”, lembra o engenheiro agrônomo Derly José Henriques da Silva, professor da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais.
“Inclusive, durante o século 17, na região da Sicília [atual Itália], os homens que queriam pedir a mão de uma moça em casamento precisavam passar por um teste de virilidade, que consistia em morder um tomate em praça pública, diante do pai da noiva. Isso era uma forma de mostrar coragem e provar que se estava disposto a arriscar a própria vida por aquele casamento”, conta.
Originários de Chile e Equador, os tomates viraram símbolo da culinária italiana
Getty Images via BBC
Independentemente dos costumes de cada local, o fato é que muitas dessas plantas se adaptaram bem às condições climáticas variadas — a batata, por exemplo, pode ser produzida rapidamente durante o curto verão europeu, em apenas três meses, e não estraga facilmente mesmo depois de colhida.
Na contramão, muitos produtos cultivados em hortas europeias e mediterrâneas também foram parar nas Américas. Entre os exemplos de plantas que se deram bem do outro lado do mundo, estão a couve-flor, o repolho, o alho, a cebola, o brócolis, a berinjela, a cenoura e a alface.
Todas elas foram trazidas aos poucos e, graças ao trabalho de melhoramento e adaptação dos agrônomos e agricultores, também proliferaram e se tornaram ingredientes da dieta daqui.
A arte imita a vida
Mas será que os frutos e as hortaliças permaneceram iguais ao longo desses últimos séculos?
Uma pista de como eram os vegetais do passado pode ser observada nas obras de arte. Esse é o trabalho de uma área do conhecimento chamada etnobotânica iconográfica pictórica.
Em resumo, os especialistas tentam ver como os grandes pintores do passado representavam plantas e ingredientes em naturezas mortas e representações de cenas cotidianas de mercados públicos e cozinhas. A partir dessas informações, é possível comparar e encontrar pistas sobre o passado e o presente desses cultivares.
O engenheiro agrônomo Paulo Cesar Tavares de Melo, professor aposentado da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), tem se debruçado sobre este tema nos últimos anos.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele explicou que é possível encontrar representações de frutos e hortaliças desde a época dos egípcios e, posteriormente, entre gregos e romanos.
Mas foi a partir do fim da Idade Média e do início do Renascimento, na transição entre os séculos 14 e 15, que as técnicas de pintura evoluíram e permitiram retratar com mais fidelidade os formatos e as características dos vegetais.
“Já é possível ver em algumas obras de Rafael Sanzio, um dos grandes mestres italianos, representações do melão, desse mesmo tipo amarelo que consumimos até hoje”, cita. Os melões também são presença constante em outras obras, como aquelas pintadas pelo espanhol Diego Velázquez.
Já nos painéis Os Quatro Elementos, feitos pelo flamengo Joachim Beuckelaer em 1569, há uma cena de duas mulheres cercadas por vegetais.
“Nela, é possível observar alfaces, frutas vermelhas, repolho roxo, couve flor, alcachofra, uvas…”, destaca Melo.
Na imagem, não há brócolis ou couve de bruxelas, variedades que pertencem à mesma família da couve-flor e do repolho. Isso porque elas só foram desenvolvidas por especialistas alguns anos depois.
Na parte inferior, o pintor também retratou cenouras brancas, roxas e amarelas que, com o passar dos anos, praticamente sumiram e foram substituídas pelas versões laranjas que encontramos hoje em feiras e mercados.
Nessa primeira fase das representações de frutas e hortaliças mais realistas, também é muito raro encontrar os ingredientes que vieram das Américas — os primeiros tomates só aparecem nos quadros das décadas posteriores, aponta o professor.
As demandas (e desafios) da atualidade
Durante o século 20, o avanço da ciência permitiu entender mais a fundo aquilo que era feito de modo empírico, ao longo de milhares de anos.
Foi nessa época que os pesquisadores descobriram, por exemplo, que o licopeno é o responsável pela cor vermelha do tomate, enquanto o betacaroteno confere o laranja das cenouras. Além de influenciar nos aspectos visuais, essas substâncias são potentes antioxidantes, que combatem o envelhecimento das células e previnem doenças.
As técnicas também ajudaram a identificar algumas espécies vegetais com atributos muito importantes, como resistência a pragas. Assim, elas podem ser cruzadas com outras mais vulneráveis, de modo a afastar fungos, vírus e outros patógenos.
“As plantações de banana do mundo todo estão sob risco por causa de um fungo chamado fusarium. Ele está dizimando os bananais da Ásia e já chegou na América do Sul”, informa o agrônomo Raul Rosa, pesquisador de fruticultura orgânica da Embrapa Agrobiologia.
“Nós temos trabalhos de cruzamento da banana maçã com uma variedade africana, que é resistente a esse fungo. A ideia é ir melhorando e modificando, até que tenhamos uma nova versão ideal para o cultivo e o consumo”, complementa.
Goto dá outro exemplo bem-sucedido de adaptação: a alface. “Antes, ela era cultivada apenas em temperaturas amenas. Tê-la à disposição no verão brasileiro era algo praticamente impossível no passado”, conta.
Isso mudou a partir dos anos 1950 e 1960, quando pesquisadores cruzaram espécies mais resistentes, capazes de aguentar o clima tropical.
Embora parte desse melhoramento ainda seja feito de forma clássica, misturando pólens e outros materiais de espécies vegetais para a criação de híbridos, o século 20 também testemunhou a chegada da engenharia genética e da transgenia.
Essas técnicas permitiram inserir genes específicos em variedades de soja, milho, feijão e outros produtos, de modo que elas se tornassem mais resistentes a pragas ou ganhassem novos atributos nutricionais, como é o caso da mandioca biofortificada, que traz um teor mais alto de ferro e zinco.
Na visão de Rosa, a agricultura do futuro dependerá de uma aliança de várias técnicas — das mais tradicionais às modernas. “Existem ferramentas de biologia molecular e biotecnologia, mas o que ainda hoje prevalece é o uso da biodiversidade”, destaca.
Silva fornece outro exemplo de como estudar os atributos de plantas específicas pode representar um ganho nutricional.
“Nós encontramos algumas pimentas que não são ardidas e trazem 2 mil ppm [partes por milhão] de vitamina C, enquanto uma laranja tem em torno de 50 ppm”, destaca.
“Ou seja: estamos falando de uma hortaliça que tem aproximadamente 40 vezes mais vitamina C. Com o uso das técnicas disponíveis hoje, seria possível transformar esse produto num lanche barato e de excelente qualidade”, pontua.
O professor da Universidade Federal de Viçosa também destaca que as demandas do mundo moderno modificaram a forma com que muitos vegetais são cultivados no campo.
“Por um lado, hoje temos famílias pequenas ou pessoas que moram sozinhas. Para elas, não faz sentido comprar um repolho de três quilos, que vai acabar estragando na geladeira antes de ser consumido. Para esse público, precisamos de frutas e hortaliças pequenas, que possam ser comidos frescos e de uma só vez”, diz.
“Mas há também muitos indivíduos que não fazem mais refeições em casa. Os restaurantes que preparam a comida para eles, por outro lado, vão se beneficiar de vegetais maiores, pois eles rendem mais”, completa.
O engenheiro agrônomo explica que, com o conhecimento acumulado até hoje, é possível atender a esses dois mercados — e produzir frutas e hortaliças grandes ou pequenas.
Segundo o pesquisador, a própria forma como esses produtos são cultivados, com mais ou menos água, adubo, luminosidade e tempo, já é suficiente para influenciar o tamanho que eles terão.
Mais ou menos nutrientes?
Mas será que depois de tantas alterações, as plantas que a gente come carregam a mesma quantidade de vitaminas, minerais e outros compostos benéficos à saúde?
A resposta depende da perspectiva. Se compararmos com as versões “selvagens” de milhares de anos, muitas frutas e hortaliças ficaram mais nutritivas e diversas.
Os milhos ‘ancestrais’ tinham menos de 2 centímetros
Getty Images via BBC
James Kennedy, um professor de química da Austrália, publicou em 2014 uma série de infográficos que ilustram essa questão.
O especialista mostra, por exemplo, que a melancia ancestral tinha 5 centímetros de diâmetro, era extremamente amarga, composta de 80% de água e só crescia em Namíbia e Botswana, na África.
A melancia “domesticada” de hoje tem até 30 centímetros de diâmetro, é doce, possui 91% de água e é cultivada em 15 países (incluindo o Brasil). E isso sem contar o aparecimento mais recente de versões sem caroço e em diferentes tamanhos e formatos, como cubos e “diamantes”.
Nesse processo de transformação e crescimento, claro, ela ganhou mais nutrientes e volume de água.
Um processo parecido pode ser observado com várias outras culturas muito comuns, como o próprio milho e a cenoura, citados anteriormente.
Então, dessa perspectiva histórica, muitos desses alimentos se tornaram mais ricos do ponto de vista nutricional.
Mas e nas últimas décadas? Será que frutas e hortaliças perderam em parte a riqueza de vitaminas, minerais e afins?
As evidências aqui ficam um pouco mais nebulosas. Alguns trabalhos até mostram uma perda de compostos em alguns desses produtos.
Uma das pesquisas mais importantes nessa área foi feita pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que avaliou a possível mudança nutricional em 43 culturas diferentes entre 1950 e 1999.
Os especialistas observaram uma baixa no teor de seis nutrientes (proteína, cálcio, fósforo, ferro, vitamina B2 e vitamina C). Porém, para outros sete elementos, não foram observadas diminuições.
O tamanho da queda também variou bastante: foi observado um enxugamento de 6% nas proteínas e de 38% na vitamina B2.
Um outro estudo, feito no Instituto de Agrobiotecnologia da Espanha, avaliou o conteúdo nutricional de grãos de trigo de diferentes épocas guardados entre 1850 e 2016 (ou 166 anos no total).
Os dados revelam um aumento na quantidade de carboidrato e uma redução nos minerais e nas proteínas.
Os autores chamam a atenção para o fato de que “o desbalanço entre carboidratos e proteínas ficou especialmente marcado a partir dos anos 1960, o que coincide com fortes aumentos na temperatura ambiental e a introdução de variedades mais curtas de trigo”.
Mas, segundo os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil, ainda não está claro os efeitos práticos dessas mudanças — e se esse é um fenômeno que de fato afeta a saúde das pessoas ou não.
Até porque, por outro lado, nesse mesmo período houve um avanço considerável nas técnicas de melhoramento genético das plantas, com a possibilidade de obter frutos e hortaliças mais resistentes ou com uma carga extra de nutrientes. E isso, por sua vez, garantiu a oferta de alimentos para as pessoas.
Pode ser então que, no final das contas, uma coisa acaba compensando a outra. Ainda assim, não há dúvidas entre os especialistas de que o tema merece ser estudado a fundo.
Com tantas mudanças ao longo de milênios, uma coisa parece certa. As frutas e hortaliças do futuro serão diferentes das que comemos no presente — até por causa das mudanças climáticas e das alterações do trabalho no campo.
“Cada vez mais precisaremos do auxílio de marcadores moleculares, que detectam os genes capazes de expressar certas qualidades em frutas e hortaliças”, antevê Rosa.
“Isso será cada vez mais essencial para lidar com a diminuição da mão de obra na agricultura e o impacto do aquecimento do planeta nas plantações”, conclui.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-64268557

Fonte: G1