'América Latina deveria ser região com menos fome no mundo', diz pesquisador
1, fevereiro 2023
Em muitas ondas de fome ao longo da história, havia disponibilidade de alimentos, mas as pessoas não conseguiam adquiri-los
EDMUND LOWE PHOTOGRAPHY
Por trás da sua última refeição, pode ter existido uma história de grandes interesses.
Não se trata apenas de quem proporcionou o alimento, mas de uma série de fatores que vão desde a produção até sua chegada ao mercado.
E, em cada uma dessas etapas, pode haver interesses em jogo entre países ou corporações, segundo Juan José Borrell, autor do livro Geopolítica y Alimentos: el Desafío de la Seguridad Alimentaria Frente a la Competencia Internacional por los Recursos Naturales (“Geopolítica e alimentos: o desafio da segurança alimentar frente à concorrência internacional pelos recursos naturais”, em tradução livre).
“Os alimentos são um fator de poder”, afirma Borrell, que é professor e pesquisador de geopolítica da Universidade de Rosário e da Universidade da Defesa Nacional, na Argentina. Ele também foi assessor da delegação argentina no Comitê de Segurança Alimentar Mundial da FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.
Borrell participou do Hay Festival Cartagena, promovido na Colômbia entre 26 e 29 de janeiro de 2023. A seguir, leia os principais pontos da sua conversa com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Para o professor argentino Juan José Borrell, ‘alimentos são fator de poder’
Arquivo pessoal
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BBC News Mundo: Como os alimentos se tornaram uma questão geopolítica?
Juan José Borrell: Os alimentos sempre foram importantes. O ser humano estruturou sua existência em torno da busca pelo abastecimento alimentar desde antes do Neolítico.
Mas podemos dizer que os alimentos se transformaram em assunto geopolítico depois da Segunda Guerra Mundial, com o grande salto dado pelos Estados Unidos no cenário internacional. No marco da doutrina da contenção, da ajuda humanitária e da criação de organismos como a ONU, temas como a fome e a pobreza – que giram em torno da produção de alimentos – adquiriram alcance internacional.
Vivemos nas últimas décadas um interesse renovado por uma série de fenômenos geopolíticos que voltaram a colocar o tema do fornecimento de alimentos na agenda maior da política internacional. Por exemplo, o crescimento das novas economias, a concorrência pelos recursos, o aumento da população mundial ou os danos aos ecossistemas.
BBC: É uma questão de Estado ou de corporações que concorrem pelas suas posições no mercado?
Borrell: É uma pergunta muito interessante porque geralmente se aborda a questão a partir de uma dicotomia entre o público e o privado. E não é assim.
Por exemplo, um dos maiores produtores, comerciantes e consumidores de alimentos que surgiram nos últimos 20 anos é a China. E sabemos que a atividade do regime comunista chinês, que planeja a política econômica e exterior das corporações do país, pode ser equiparada à de qualquer empresa ocidental privada, como Cargill, Monsanto ou Unilever.
Entidades, corporações e organismos internacionais fazem parte desta concorrência. Nas grandes potências, o setor privado trabalha de mãos dadas com o setor público.
BBC: Quais são os países mais bem posicionados neste aspecto?
Borrell: Quem cresceu de forma gigantesca nos últimos anos foi a China, com uma política eficiente de expansão que a levou a buscar novos recursos e melhorar a alimentação da sua população. O país mudou seus hábitos alimentares e consome mais proteína animal, aumentando a demanda nos países produtores do Cone Sul, por exemplo.
Com relação às potências alimentares, os Estados Unidos são o centro de algumas das maiores corporações que impulsionaram a “revolução verde”, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E há também o Reino Unido.
No que antes se chamava de Terceiro Mundo, podemos mencionar o Brasil e, em um ponto mais distante, a Argentina, que foi submetida a uma exploração intensiva e monocultura, com perda da biodiversidade.
Casualmente, neste boom produtivo, os países da América Latina sofreram aumento da pobreza estrutural e da insegurança alimentar. É um paradoxo.
O salto dos Estados Unidos no cenário global após a Segunda Guerra Mundial fez com que os alimentos se transformassem em um tema de interesse geopolítico
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BBC: Qual é o objetivo dos países nisso tudo? Garantir sua própria segurança alimentar ou ganhar influência político-econômica por meio dos alimentos?
Borrell: Ambas. Os alimentos são um fator de poder. Produção, sementes, patentes, insumos, comércio, portos, frota, preços ou produtos nas gôndolas dos mercados são uma enorme fonte de poder, capacidade de influência e geração de riqueza.
As grandes potências concorrem por espaços de mercado, para ganhar renda e ter maior autonomia alimentar.
Outros países servem para extração de renda, como é o caso da Argentina. Não existe uma política alimentar estratégica que solucione o problema do acesso da população aos alimentos.
O fato de um país dispor de um sistema de produção agrícola intensiva não garante que as necessidades alimentares da sua população sejam automaticamente satisfeitas.
BBC: Segundo um relatório da ONU, no ano passado, o mundo retrocedeu nos seus esforços para acabar com a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição. Por que existe cada vez mais fome se temos melhor tecnologia para produzir alimentos?
Borrell: Existe um grande mito: o de que, graças à tecnologia, os rendimentos aumentarão e, consequentemente, maior quantidade de pessoas terá acesso a um maior fornecimento de alimentos.
Ou, ao contrário, que existe fome onde faltam alimentos ou há excesso de população.
O professor indiano Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel de Economia, demonstrou que, em muitas fomes históricas, havia fornecimento de alimentos, mas a população não tinha forma de adquiri-los.
De fato, o sistema de produção intensiva não gera necessariamente alimentos. Ele gera uma matéria-prima que também pode ser empregada, por exemplo, para alimentação de animais ou fabricação de biocombustíveis.
A Argentina é o maior produtor de biodiesel de soja do mundo e os Estados Unidos fabricam etanol com mais de um terço da sua colheita de milho.
BBC: Ou seja, o problema da fome não se deve necessariamente à quantidade de alimentos disponíveis…
Borrell: Exato. Tem a ver, como demonstra a FAO, com a questão do acesso.
Mais de 85% da população mundial têm acesso aos alimentos disponíveis no mercado. Mas, se não tenho os meios econômicos para procurá-los, meu acesso será prejudicado.
Relatórios do Banco Mundial indicam que cerca de 55 milhões de pessoas sofrem de fome crônica na América Latina
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BBC: Que papel desempenha a América Latina no mapa agroalimentar global?
Borrell: O que ocorre na América Latina e no Caribe representa um grande paradoxo.
Dentre as regiões que eram consideradas em vias de desenvolvimento, nosso continente é o que tem a menor quantidade de pessoas que sofrem de fome crônica. Os últimos relatórios do Banco Mundial calculavam, em média, cerca de 55 milhões de pessoas.
Mas, atualmente, a América Latina produz alimentos para 1,3 bilhão de pessoas e tem capacidade de produzir ainda mais. (Veja ao fim deste texto mais dados sobre a fome no mundo)
A América Latina é um grande produtor de alimentos, mas parte da sua população não tem acesso ao abastecimento. A América Latina é o lugar onde deveria haver menos pessoas com fome no mundo. É talvez o continente mais rico em recursos, terras férteis, água potável, biodiversidade…
BBC: Então, qual é o problema?
Borrell: É a economia política, uma combinação de políticas extremamente liberais e políticas extremamente socialistas. Ambas geraram aumento da pobreza, retrocesso dos setores de classe média e mudanças do tipo de alimentação.
Estamos observando um fenômeno que não existia meio século atrás. As pessoas que conseguem ter acesso ao abastecimento alimentar consomem alimentos com qualidade nutricional mais baixa. É um fenômeno que não fica circunscrito apenas à pobreza, mas também atinge a classe média.
Os setores da classe média que dispõem de recursos, automóveis, boa moradia, celulares e bem-estar sofrem de excesso de peso, obesidade mórbida ou outros problemas, devido aos maus hábitos alimentares ou produtos industriais com baixa qualidade nutricional.
Nem sempre as pessoas que têm acesso à cadeia de abastecimento consomem alimentos de boa qualidade nutricional
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BBC: O sr. vê a China como um ator de maior liberdade de ação para a América Latina?
Borrell: É uma pergunta delicada. A questão não é de liberdade.
O que a China vem fazendo é ganhar mercados. Precisamos entender que o tipo de relações que a China estabelece também tem caráter assimétrico.
A China se transforma em um grande comprador e, ao mesmo tempo, impõe condições que reduzem a margem de ação dos países da região.
As potências nunca estabelecem relações entre iguais com países mais fracos, vulneráveis ou periféricos.
BBC: A Argentina já foi considerada o “celeiro do mundo”, mas cerca de quatro em cada 10 pessoas do país vivem abaixo da linha da pobreza. Como se explica esta contradição?
Borrell: O título de “celeiro do mundo” é um grande exagero. Não existe apenas um, mas sim diversos celeiros do mundo. Tem mais a ver com uma retórica nacional de um passado de grandeza que não é verdade.
A Argentina é um país rico em recursos, mas tem uma política econômica deficiente, que é uma fábrica de geração de pobreza. Não será, de nenhuma forma, seu próprio celeiro, que dirá o celeiro do mundo.
A Argentina tem todas as condições para ser um grande produtor de alimentos. Estimativas indicam que ela poderia produzir alimentos para 300 milhões de pessoas. Mas qual é o sentido de produzir para tantas pessoas se a metade dos menores de 14 anos da Argentina sofre de fome crônica?
Toda uma geração está sendo privada de suas possibilidades de desenvolvimento, crescimento e trabalho, devido a uma série de políticas econômicas das últimas décadas, tanto pela direita quanto pela esquerda, que geraram aumento da pobreza da população.
Estatísticas oficiais indicam que 51,4% dos argentinos menores de 14 anos vivem na pobreza
REUTERS
Fome no mundo
Atualmente, segundo a FAO, cerca de 828 milhões de pessoas passam fome no mundo. Esse índice seguia praticamente inalterado desde 2015, próximo de 8% da população global. Mas com a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia, o número saltou nos últimos anos.
A situação é particularmente preocupante na Ásia, onde cerca de 20% da população enfrentou a fome em 2021 (os últimos dados disponibilizados pela ONU). No mesmo período, no continente africano, 9% da população sofria de fome, e na América Latina e Caribe, 8,6%.
No Brasil, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, conduzido pela Rede PENSSAN e divulgado em junho passado, 33,1 milhões de brasileiros vivem em situação de fome no país. No fim de 2020, eram 19,1 milhões.
Esta reportagem é parte do Hay Festival Cartagena, um encontro de escritores e pensadores realizado na Colômbia entre 26 e 29 de janeiro de 2023.
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Fonte: G1