Movimento antiguerra: grupos de oposição da Rússia buscam unidade para combater Putin
Diáspora anti-Putin busca legitimidade junto ao Ocidente, mas movimento esbarra em falta de representatividade
Enquanto a guerra da Ucrânia ganha novos contornos com a contraofensiva de Kiev no campo de batalha, líderes e representantes da oposição russa realizaram nos dias 5 e 6 de junho uma conferência em Bruxelas, no Parlamento Europeu, para discutir o futuro da Rússia.
Políticos, ativistas, jornalistas e cientistas políticos russos, que hoje vivem fora do país, buscaram solidificar um movimento antiguerra e articular estratégias para pensar novos caminhos para a Rússia. No entanto, o evento também expôs que a coalizão oposicionista enfrenta dificuldades de articulação interna e penetração na vida política russa.
Duas premissas uniam todos os participantes: a condenação à guerra na Ucrânia e a oposição ao governo de Vladimir Putin. Não foi o primeiro evento deste tipo desde que a Rússia iniciou a guerra na Ucrânia. Em 30 de abril, os oposicionistas russos assinaram uma declaração política conjunta em Berlim após várias semanas de trabalho para definir os termos do documento.
A “declaração de Berlim” foi o primeiro documento político lançado desde 24 de fevereiro de 2022, data do início do conflito, a lançar diretrizes para unificar a oposição política russa. O apelo, em particular, afirma que “as tropas russas devem ser retiradas de todos os territórios ocupados, os criminosos de guerra devem ser levados à justiça e as vítimas de agressão devem ser pagas indenizações”. A declaração também contém cláusulas sobre a necessidade de eliminar “o regime ilegítimo e criminoso de Putin” e a inadmissibilidade da “implementação da política imperial no país e no exterior”.
No painel de abertura da conferência de Bruxelas, intitulada “The Day After” (“O Dia Seguinte”, em inglês), um dos mais proeminentes oposicionistas russos, o ex-oligarca e membro do comitê antiguerra Mikhail Khodorkovsky deu o tom das motivações da conferência reiterando os termos assinados em Berlim.
“Nós, pelo menos a maioria de nós presentes nesta sala, nos reunimos porque nós compartilhamos valores em comum, valores esses inclusive manifestados na declaração de Berlim: a guerra é agressiva e criminosa; o regime que a desencadeou é ilegítimo e criminoso; a Ucrânia, com suas fronteiras de 1991, deve receber compensações; criminosos de guerra devem ser punidos; os presos políticos devem ser libertados; a existência de uma política imperial dentro e fora do país é inaceitável”, afirmou Khodorkovksy.
Apesar da conferência de junho soar como uma reiteração de certas pautas já consolidadas dentro do contexto da oposição emigrada da Rússia, especialistas que participaram da conferência apontam que a singularidade desse evento foi um passo importante para criar uma coalizão da oposição mais legítima aos olhos do Ocidente. É o que afirma o cientista político Ivan Preobrazhenskii, que participou do evento em Bruxelas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista destacou que o principal objetivo da conferência era, “como princípio, organizar uma conferência no Parlamento europeu, sendo a maior e mais representativa conferência deste tipo desde a agressão de larga escala contra a Ucrânia”. De acordo com ele, a principal tarefa que os organizadores assumiram para si era “demonstrar certa ‘adequação’ do movimento antiguerra russo”,
“Demonstrar que na realidade os rumores ativos e inflados sobre a fragmentação de diversos grupos de oposição não correspondem à realidade. É claro que existem divergências, e isso é normal, mas não há nenhum conflito ríspido de um ‘todos contra todos’ entre a comunidade antiguerra russa”, argumenta. Somado a isso, a própria comunidade antiguerra viu esse encontro como um passo para certa legitimação, reconhecimento de si mesmo como uma Rússia alternativa, com a qual o Parlamento europeu e a Comissão Europeia estariam prontos para realizar certas negociações”, explica.
O fato deste tipo de articulação acontecer no exterior, entre forças políticas que vivem e atuam fora da Rússia, naturalmente é uma fragilidade em termos de representatividade e impacto na situação dentro do país. Mas, ao mesmo tempo, esse obstáculo é uma condição que reflete a atual conjuntura política do país, sobretudo no contexto de uma guerra.
Após o início da intervenção na Ucrânia, qualquer atividade crítica – na política, cultura, no jornalismo – ficou inviabilizada após a aprovação de leis que punem o “descrédito das Forças Armadas da Rússia”. Além disso, a guerra provou uma migração em massa da Rússia, criando uma diáspora de russos espalhados por vários países, sobretudo na Europa.
A cientista política Ekaterina Shulman, uma das proeminentes acadêmicas russas a participar da conferência de Bruxelas, observou que há uma expectativa para que o Parlamento Europeu eleja um profissional para acompanhar os direitos dos russos fora da Rússia, para ser justamente esse elo entre a Rússia e os seus dissidentes.
Já o político da oposição Leonid Gozman, que atua como presidente da União das Forças de Direita da Rússia, em sua intervenção, chamou a atenção para a importância do diálogo com as pessoas que estão na Rússia e expôs o problema do isolacionismo da comunidade russa que emigrou.
“Raramente recorremos aos nossos compatriotas. Apelamos uns aos outros e aos líderes ocidentais. Mas viveremos ao lado das pessoas que votaram em Putin, que acreditam que a Rússia foi atacada pela Otan. Pra onde eles vão? Eles vão ficar na Rússia”, disse.
O tema da manutenção do elo com os cidadãos da Rússia foi umas das pautas centrais da conferência, suscitando a discussão sobre a preocupação com um possível bloqueio de redes como YouTube e o Telegram, que, na prática, permanecem como as únicas plataformas onde os russos conseguem acesso a informações alternativas e/ou críticas à versão oficial dos fatos propagados pelo Kremlin. Todos os meios de comunicação independentes que tinham alguma projeção na Rússia foram impedidos de operar no país após o início da guerra.
Ivan Preobrazhenskii comentou que uma das propostas que foram discutidas durante o evento foi a possível criação de novas plataformas informacionais de combate às fake news dentro da Rússia. Ele observou que a vice-presidenta da Comissão Europeia, Vera Yurova, garantiu durante o evento que a União Europeia está tentando realizar o trabalho de apoio nesse sentido com grandes empresas ocidentais de tecnologia como Google, Apple, YouTube.
Ausência da equipe de Navalny expõe fragmentação
Apesar dos esforços de avançar na busca de uma unidade, uma fragmentação entre o bloco de oposição russo ficou evidente no próprio programa da conferência: a equipe do Fundo Anticorrupção (FBK), organização de Aleksey Navalny – o mais notório oposicionista russo, atualmente preso -, recusou o convite para a conferência.
De acordo com Leonid Volkov, chefe de gabinete de Navalny, os membros de sua equipe não participaram do encontro por receio de estar “no mesmo barco” com figuras rivais da oposição que não compartilham de suas opiniões. Por outro lado, a dinâmica da conferência apontou para uma articulação mais horizontal das forças de oposição do país.
A equipe de Navalny já havia ignorado a articulação do movimento antiguerra em abril, durante a conferência de Berlim, gerando críticas de sectarismo por parte de outras forças oposicionistas russas.
Busca de horizontalidade
Além de um grupo de trabalho para continuar a articulação com diferentes estruturas de poder europeias, a conferência de Bruxelas não produziu resultados concretos e evidenciou os desafios de legitimidade e representatividade frente à população russa. A abertura de um diálogo menos competitivo sob o consentimento do Parlamento europeu, todavia, já foi encarado como um progresso.
O cientista político Ivan Preobrazhenskii observa que “agora a comunidade antiguerra está fortemente orientada a não criar estruturas hierárquicas, não criar esquemas voltados à lideranças personalistas, nos quais uma pessoa possa tomar decisões por todos os outros”.
De acordo com ele, o êxito do movimento antiguerra foi dar um primeiro passo na busca de legitimidade e na horizontalidade da proposição de agendas. Os avanços são mais de método do que de conteúdo. Mas Preobrazhenskii destacou que um dos caminhos apontados é de impulsionar um sistema político na Rússia que seja mais próximo ao parlamentarismo.
“A comunidade antiguerra, incluindo Aleksey Navalny, cuja equipe não compareceu nesse encontro, apoia a ideia de que no futuro a Rússia seja uma república parlamentar, e não uma ‘super-presidência’ constitucionalmente formal como agora”, disse.
Edição: Thales Schmidt
Fonte: Brasil de Fato